Mania Mista acompanhada
de sintomas psicóticos: Um ponto de contato entre a Esquizofrenia
e a Psicose Maníaco-Depressiva?
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Souza,
G.F.J.*
Fábregas, B.C.**
Da Silva, L.A.P.***
*Médico Psiquiatra, Preceptor da Residência de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas da UFMG
**Médico Residente de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas da UFMG
***Médico Psiquiatra, Professor
Auxiliar Substituto do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade
de Medicina da UFMG
Resumo:
No presente artigo os autores fazem o relato
do caso de uma paciente de trinta anos de idade que, após manifestar,
de início, quadro de transtorno bipolar misto, posteriormente evoluiu
de forma desfavorável com sintomas psicóticos e deterioração
mental grave, levando ao diagnóstico de transtorno esquizoafetivo
misto. Os autores discorrem sobre as dificuldades do diagnóstico
diferencial e prognóstico entre quadros de mania mista com sintomas
psicóticos, transtornos esquizoafetivo e esquizofrenia, através
de uma revisão de estudos recentes sobre o espectro bipolar e aquelas
outras condições clínicas, enfatizando a necessidade
de um diagnóstico preciso desses casos e de uma intervenção
terapêutica adequada e precoce.
Unitermos:
Transtorno esquizoafetivo
Mania mista
Esquizofrenia
Transtorno bipolar do humor
Espectro bipolar
Psicopatologia
Classificação
Diagnóstico
Prognóstico
Tratamento
Introdução:
O diagnóstico de fases de mania
mista pelo clínico quase sempre não é tarefa das
mais fáceis. As dificuldades começam pelo reconhecimento
preciso daquilo que é denominado como disforia, ou seja, uma alteração
psicopatológica do humor onde irrompem, simultaneamente, vivências
depressivas e hipertímicas ou, mesmo, francamente maníacas.
Não raro, esse distúrbio é confundido e diagnosticado
erroneamente como “depressão ansiosa” e tal equívoco
costuma trazer sérias conseqüências para os pacientes
devido à não prescrição de estabilizadores
do humor e à persistência ou agravamento, desse modo, do
componente hipertímico ou maníaco do quadro clínico.
Por outro lado, as dificuldades diagnósticas podem acentuar-se
significativamente caso ocorram, também simultaneamente, sintomas
psicóticos esquizofreniformes, tais como alucinações
auditivas e vivências de influência e de intervenção
alheia. Nesses casos, o quadro clínico pode apresentar-se ao observador
como algo irreconhecível à primeira vista devido à
mistura aparentemente desordenada de tantos elementos psicopatológicos
estritamente distintos em sua verdadeira natureza, mas que se fundem integralmente
nos sucessivos momentos ininterruptos das vivências anômalas
ao longo da evolução da doença.
Em vista disso, nesses casos, várias indagações diagnósticas
podem ser formuladas.
Trata-se de Transtorno Bipolar acompanhado
de sintomas psicóticos? Ou de Esquizofrenia com sintomas afetivos?
Ou trata-se, na verdade, de Transtorno Esquizoafetivo?
Seria ocioso, neste artigo, enumerar os critérios diagnósticos
presentes nos atuais manuais de classificação para a caracterização
de cada uma dessas condições nosológicas, menos pelo
caráter inflexível inerente ao diagnóstico criteriológico,
do que pela conceituação genericamente ampla de uma grande
diversidade de vivências psicóticas, ali sumariamente intituladas
apenas como “delírios” e “alucinações”.
Além disso, o diagnóstico oficial de mania sofre, até
o momento atual, de considerável imobilidade taxonômica,
caso obedeça-se rigorosamente a todas as exigências de preenchimento
dos critérios enunciados por esses manuais de classificação,
principalmente no que se refere àquelas inúmeras formas
clínicas intermediárias e mistas da doença e que
vêm sendo estabelecidas à luz de novos estudos genéticos
e de observação evolutiva. Apesar dessas limitações,
é evidente que não se deve negligenciar as diretrizes criteriológicas
presentes nesses manuais de classificação, tendo-se sempre
em mente, todavia, que o dinamismo inerente ao diagnóstico eminentemente
clínico quase sempre transcende tais escaninhos taxonômicos,
considerando-se o seu caráter orgânico, naturalístico
e, predominantemente, vivo.
Desse modo, faremos a seguir a apresentação de um caso clínico
marcado por sucessivas impressões diagnósticas contraditórias
e por uma evolução clínica inusitada e surpreendente,
que bem pode ilustrar as dificuldades diagnósticas e terapêuticas
que costumam apresentar-se ao médico no exercício da prática
psiquiátrica cotidiana.
Relato de caso:
M.C. foi por mim atendida pela primeira
vez em janeiro de 2001, encaminhada que fora pelos seus irmãos.
Contava, então, com trinta anos de idade e foi à consulta
acompanhada do marido. Era a mais nova dentre sete filhos de uma família
de origem social bastante simples. Os pais haviam se separado quando ela
era menina de tenra idade. O pai tinha abandonado a família e a
mãe havia falecido precocemente após uma doença nervosa
de longa evolução complicada por alcoolismo, tendo os avós
maternos assumido a educação das crianças. O pai
nunca demonstrara qualquer carinho por ela e a maltratava, espancando-a
freqüentemente e chamando-a de “retardada”. Com efeito,
sempre fora mais limitada intelectualmente que os demais irmãos,
fato que não a impediu de cursar a escola até o primeiro
ano do segundo grau. Também sempre fora menina muito nervosa, sujeita
a desmaios súbitos e bastante impressionável. Não
tinha amigos, preferindo ficar isolada a cismar. Na puberdade tornou-se
uma bonita moça e, logo, iniciou seus namoricos. No entanto, como
o temperamento se revelasse extremamente volúvel e impulsivo, cedo,
os namoros transformaram-se em inúmeros e sucessivos relacionamentos
amorosos instáveis e tumultuados. Em casa mostrava-se voluntariosa
e explosiva e as brigas e desentendimentos com os irmãos sucediam-se
com freqüência. Sempre foi considerada pela família
uma pessoa “de veneta” e teimosa, fazendo tudo o que bem entendia,
apesar das opiniões contrárias. Também era tida como
“esquisita” e, por vezes, tomava atitudes esdrúxulas
e surpreendentes. Depois de moça feita, algumas vezes sofreu certas
crises estranhas, nas quais suas feições e voz mudavam e
dizia estar incorporando o espírito da falecida mãe.
Entretanto, tinha-se casado há cerca de três anos com um
homem humilde de profissão, pedreiro, mas que a amava com devoção
e se mostrava muito atencioso e cuidadoso com a família, principalmente
com a filha de cinco meses de idade, pela qual nutria extremada dedicação.
Era homem muito simples, calado e contemplativo, mas inteligente e arguto,
percebendo, com clareza, tudo o que acontecia com a mulher.
Informou que M.C. começara a apresentar nítida mudança
em seu comportamento logo após o parto, por cesárea, da
filha. Disse que a esposa andava muito nervosa e agressiva e, principalmente,
com ciúmes excessivos em relação a ele, ciúmes
que, inacreditavelmente, se estendiam até à própria
filha. Chegava a agredi-lo fisicamente, falando em suicidar-se e matar
a menina. Seguia-o aos locais de trabalho e, não raro, promovia
escândalos, nos quais, chorando, implorava que voltasse para casa,
alegando que estava se sentindo sozinha. Além disso, exibia uma
inédita loquacidade, cria que os vizinhos a estavam observando
e tecendo comentários maldosos a respeito de seu passado amoroso,
quase não dormia, despertando todas as madrugadas invariavelmente
às três horas da manhã e evidenciava uma tendência
a gastos excessivos e conduta dissipadora, chegando ao ponto de, certo
dia, inexplicavelmente, dar roupas em perfeito estado a pessoas desconhecidas.
Ainda, às vezes chorava continuamente e referia uma angústia
e falta de ar absolutamente intoleráveis.
À consulta, com efeito, M.C. falou quase ininterruptamente em meio
a soluços convulsivos e a face banhada de lágrimas. Sem
dúvida, a paciente, apesar da aparência descuidada e das
vestes simples, era uma mulher de traços delicados, de boa aparência
e o discurso fluente e correto não faziam pensar em nenhum nível
de retardo mental, como a família, imperceptivelmente, induzira-me
a pensar. Ao contrário, a mímica era vivaz e expressiva
e a afetividade mostrava-se síntone e coerente, exibindo um grau
satisfatório de adequação ao contato verbal. Disse,
com o semblante carregado de angústia, que ela própria não
sabia explicar o que estava acontecendo, que estava sofrendo muito e que,
para seu desgosto, estava trazendo infelicidade para seu marido e sua
filha. “Sinto muitos ciúmes, sim, mas não consigo
me controlar, não entendo o que está se passando comigo...”,
afirmou desolada e chorando baixinho.
Minha primeira impressão foi de que se tratava de Transtorno Bipolar,
episódio misto. Prescrevi carbonato de lítio, de início
450 mg/dia e, posteriormente, de acordo com o resultado da litemia, 900
mg/dia, associado com 25 mg/dia de amitriptilina, recomendando que retornasse
dentro de duas semanas para reavaliação. Entretanto, como
manifestasse melhora significativa da sintomatologia em poucos dias, a
família preferiu que ela continuasse o tratamento em um CERSAM
(Centro de Saúde Mental) da rede pública próximo
à sua casa. Lá, os irmãos foram informados de que
ela teria um tratamento multidisciplinar, com psicoterapia e terapia ocupacional,
além do controle psiquiátrico. E, com efeito, teve. Passava
o dia inteiro no Centro, costurando panos rudes com linhas coloridas,
desenhando e conversando com uma psicóloga. Quanto à medicação,
logo o psiquiatra suspendeu o carbonato de lítio. Como piorasse,
deram-lhe haloperidol associado com diazepam. Ao fim de quase um ano,
em dezembro de 2001, estando M.C. em uso de apenas 10mg/dia de diazepam,
a família resolveu marcar nova consulta comigo.
Desta feita, a paciente mostrava-se bem pior do que a primeira vez que
a vi. Apresentava os mesmos sintomas por ocasião da primeira consulta,
mas com agravamento dos fenômenos auto-referenciais, agora francamente
paranóides. Agora mostrava-se bem mais agitada e explosiva, xingando
o marido e a família, culpando-os pelos seus infortúnios.
Praticamente não dormia e mostrava-se hostil para com os vizinhos,
além de sentir-se muito angustiada e chorar continuamente. Desta
vez, chamou-me a atenção um brilho de insanidade que fulgurava
em seu olhar esgazeado e inquieto. Os cabelos estavam desgrenhados e havia
engordado muito. Decididamente, o quadro clínico de M.C. estava
apresentando uma evolução flagrantemente desfavorável.
Receitei-lhe valproato de sódio associado à risperidona,
ambos em doses crescentes, o primeiro até 1500mg/dia e o segundo
até 6mg/dia.
Voltou ao consultório em janeiro de 2002, relatando estar se sentindo
melhor. Estava mais tranqüila, apesar de dizer que estava sentindo
muitos medos vagos e infundados.
Em fevereiro, apesar da melhora inicial, voltou a apresentar sintomas
inquietantes. Manifestou piora da depressão, com insônia,
crises de choro e, pela primeira vez, disse ter pensado em matar a própria
filha. O marido, bastante preocupado, relatou estar observando atitudes
insólitas da mulher como, por exemplo, bater palmas subitamente
e ficar marchando no mesmo lugar. Após um mês sem nenhuma
melhora, resolvi substituir a risperidona pela ziprasidona, droga que
iniciei com 80mg/dia e cheguei até 120mg/dia sem resultados satisfatórios.
Em meados de março, após tentativa frustrada de suicidar-se
pulando na frente de um ônibus, voltou ao consultório em
caráter de urgência e em uso de 120mg/dia de ziprasidona.
Mostrava-se taciturna e reticente ao contato verbal e apresentava alguns
movimentos involuntários nos membros superiores e inferiores. Então,
inopinadamente e para minha surpresa, levantou-se e, com o olhar fixo
e distante, começou a marchar no mesmo lugar de um lado para outro
de modo bizarro e esdrúxulo. Indaguei-lhe o quê significava
aquela atitude e ela respondeu-me quase automaticamente que estava obedecendo
“às vozes”. Procurei tranqüilizá-la e,
depois de sentar-se, disse-me, com o olhar esgazeado e muito perturbada,
que há tempos estava ouvindo vozes femininas ordenando-lhe que
“matasse e enterrasse a filha na areia” e dizendo-lhe: “você
vai ver...você vai ver” (sic).
Decididamente, M.C. estava sob a influência de maciças alucinações
auditivas sob a forma de ‘ordens’e ‘ameaças’,
além de apresentar um comportamento marcadamente incoerente e alterações
da psicomotricidade, estereotipias, muito sugestivas de esquizofrenia.
Receitei-lhe olanzapina na dose de 10mg/dia e convoquei a família
para sugerir a realização de ECT. Sem dúvida, havia
risco de vida, nesse caso devido à ideação suicida
e a possível efetivação de dano físico à
filha da paciente.
Os familiares aceitaram a sugestão e a terapêutica por ECT
foi iniciada em caráter externo duas vezes por semana. Após
quatro aplicações de eletroconvulsoterapia sob narcose e
anestesia, M.C. manifestou melhora acentuada dos sintomas psicóticos,
notadamente das alucinações auditivas. Entretanto, a paciente
manifestou viragem maníaca importante, com intensa euforia, inadequação,
indiscrições sexuais, taquipsiquismo e fugas de idéia,
o que obrigou a interrupção do ECT e a prescrição
de carbonato de lítio, 900mg/dia, associado a 1500mg/dia de ácido
valpróico e 10mg/dia de olanzapina.
Evoluiu muito bem durante o mês de abril, porém no final
de maio apresentou viragem depressiva moderada, com crises de choro espontâneas,
hipobulia, hiperfagia e hipersonolência diurna, o que motivou a
prescrição de sertralina na dosagem de 50 a 150mg/dia.
Em junho a paciente estava razoavelmente bem, apesar de persistirem alguns
sintomas depressivos residuais, tais como desânimo, diminuição
dos cuidados pessoais e da iniciativa.
Continuou distímica e improdutiva com o passar do tempo. No entanto,
à medida que as semanas passavam, M.C. mostrava-se afetivamente
mais embrutecida. Restringia-se ao leito durante quase todo o tempo, comia
vorazmente e aparentava indiferença generalizada, inclusive em
relação à filha.
Em setembro já havia engordado bastante e manifestava uma espécie
de indolência fria e apragmática. No final do mês,
depois de tentar agredir a filha com violência, num surto de agressividade
desproposital, os irmãos assumiram a guarda da criança provisoriamente
e resolveram reencaminhá-la para atendimento psiquiátrico
em um hospital público. Desde então, até o momento
atual, tenho acesso apenas a notícias da paciente e as últimas
informações dão conta que sua evolução
clínica continua desfavorável, mantendo uma apatia e indiferença
generalizada assaz significativas.
As últimas notícias a respeito da paciente, de setembro
deste ano, apenas confirmam a manutenção de seu estado clínico
em um nível estacionário. Atualmente, está em uso
de olanzapina, residindo com o marido e a filha na zona rural, na casa
de sua sogra, onde praticamente não realiza nenhuma atividade produtiva,
mantendo-se apática, abúlica e apragmática. Os cuidados
em relação à filha são de responsabilidade
do marido e de sua família, desde que M.C. não demonstra
nenhum interesse em fazê-lo.
Discussão:
Em primeiro lugar, têm-se reafirmado
o conceito clássico de mania psicótica que pode cursar com
sintomatologia sensoperceptiva realmente grave (1). Diagnosticá-la
erroneamente como esquizofrenia é um equívoco comum devido
a várias razões, como as descritas a seguir (2):
· Dar mais importância aos aspectos transversais do que aos
longitudinais evolutivos do quadro clínico
· Confundir a recuperação inter-episódica
incompleta com o deterioro esquizofrênico
· Confundir os componentes bizarros do quadro bipolar com os transtornos
típicos de pensamento da esquizofrenia
· Atribuir o humor irritável e querelante a delírios
paranóides
· Tomar a anedonia e despersonalização depressivas
como aplanamento afetivo característico da esquizofrenia
· Perceber o taquipsiquismo como associações frouxas
de idéias e representações
· Dar demasiada importância a eventuais sintomas “schneiderianos”.
Assim, não deveríamos considerar
como fatores diagnósticos decisivos aqueles sintomas transversais
que sugerem “extravagância”, “deterioro”
ou “incongruência com o humor”. Não é
estranho que sintomas “schneiderianos”, tais como transmissão
de pensamento, sejam parte do quadro delirante maníaco, e não
devem nunca ser considerados como incongruentes com o humor unicamente
por serem sintomas de 1a ordem de Kurt Schneider (3). Sistemas diagnósticos
mais recentes, como o DSM-IV (4), levaram em conta indícios de
que se estava diagnosticando excessivamente a esquizofrenia. Um desses
indícios é o estudo dos Estados Unidos - Reino Unido, publicado
em 1968, por John Cooper e colaboradores, que demonstrou variação
no número de pacientes classificados como esquizofrênicos
nos Estados Unidos e no Reino Unido, decorrente de uma demasiada ênfase,
nos Estados Unidos, sobre a presença de sintomas psicóticos
como um critério de diagnóstico para a esquizofrenia (5).
A crítica a ser feita é que as classificações
nosológicas atuais não valorizam quadros que não
se encaixam com clareza no diagnóstico de esquizofrenia, ou quadros
afetivos, mas que têm sintomas de 1a ordem – apesar de sabermos
desde Jaspers (6) que não podemos definir diante de qual patologia
estamos simplesmente a partir do conteúdo ou forma do delírio.
De fato, a experiência maníaca pode ser tão intensa
que pode dar lugar a estados aparentemente bizarros e incoerentes que,
somente sob observações fenomenológicas acuradas,
podem ser atribuídas a mania. Outra deficiência da definição
de mania realizada pelo DSM-IV é o pouco peso concedido às
percepções aumentadas como ponto cardinal da enfermidade
(3). Unido à distraibilidade e fuga de idéias, tão
características da mania grave, esse aumento generalizado da percepção
pode produzir uma ampla gama de experiências alucinatórias
e delirantes que podem levar à chamada incongruência com
o humor. É importante destacar que o tratamento com estabilizadores
de humor e, inclusive, com neurolépticos clássicos, pode
fazer praticamente desaparecer a aceleração maníaca
e a exaltação do humor, gozando de menor êxito na
abordagem da sintomatologia psicótica. Com isso, pode haver um
diagnóstico enganoso dos sintomas psicóticos na ausência
da sintomatologia afetiva.
Atualmente é sabido que a mania depressiva ou os estados mistos
disfóricos têm uma particular tendência a evoluir para
estados psicóticos graves (7). Esses pacientes, descritos pelo
clássico artigo de Himmelhoch (8), apresentaram elementos de depressão
dentro de uma síndrome maníaca, dando lugar a um quadro
psicótico intensamente agitado caracterizado por uma elevação
disfórica do humor, insônia grave, agitação
psicomotora, pensamento acelerado, ideação suicida, grandiosidade,
hipersexualidade, delírios persecutórios, alucinações
auditivas e confusão mental. O DSM-IV destaca a necessidade da
presença das síndromes depressiva e maníaca por completo
para diagnosticar os estados mistos de transtorno bipolar. Na prática
clínica, a ausência de alguns sintomas depressivos na síndrome
é suficiente para dar lugar a uma forma maníaca mista (1,9,10).
Os neurolépticos complicam o diagnóstico dos estado mistos
ao passo que, quando são prescritos para reduzir a agitação
ou aceleração, podem produzir certo embotamento afetivo
e dar, assim, a falsa impressão de ser parte da sintomatologia
bleuleriana clássica da esquizofrenia.
De um modo mais geral, o diagnóstico diferencial entre psicose
bipolar e esquizofrenia pode ser realizado a partir de algumas destas
considerações (11):
· História familiar de transtornos afetivos em três
gerações consecutivas
· Curso bifásico
· Ausência de incoerência persistente e pobreza de
conteúdo
· Bom contato afetivo
· Resposta espetacular a estabilizadores de humor
· Boa remissão clínica
Estudos recentes têm expandido a
bipolaridade para um espectro mais amplo (11,12). O que é hoje
considerado transtorno bipolar foi reconhecido durante grande parte do
século como psicose maníaco-depressiva. Nos esquemas de
classificação formais correntes adotados pela Associação
Psiquiátrica Americana (DSM-IV) (4) e pela Organização
Mundial de Saúde (CID-10) (13), a posição de Kraepelin
foi comprometida em favor da distinção clínica unipolar-bipolar.
O transtorno depressivo maior domina os transtornos de humor nesses manuais.
O que é contido na categoria bipolar condiz com uma definição
mais estreita e limitada da doença, na qual excitações
maníacas se alternam com depressão. À medida que
a hipomania é reconhecida, as exigências criteriológicas
para seu diagnóstico são altas e há muitas cláusulas
de exclusão. Como resultado, publicações derivadas
de pesquisa ou instrumentos baseados em tal critério conservador,
têm estimado bipolaridade em cerca de 1% da população
geral, e em apenas 10% a 15% de todos os transtornos de humor.
O reconhecimento do espectro clínico inteiro do transtorno bipolar
é uma preocupação maior de saúde pública,
pois, apesar da crescente disponibilidade de novos tratamentos, sub-diagnósticos
ou demora nos diagnósticos ou sub-tratamentos grosseiros continuam
a assolar nossa área.
Estudos de Akiskal e Mallya (14) mostram que aproximadamente 4% a 5% da
população geral pertencem a um espectro mais amplo de bipolaridade
com fenomenologia predominantemente depressiva e ausência de completa
mania. Essa é, de fato, a taxa de prevalência que novos estudos
epidemiológicos de transtorno bipolar estão agora relatando
(7).
O espectro conceitual de bipolaridade tem sido enormemente enriquecido
pelo estudo epidemiológico Zurich (15), demonstrando a existência
de curtos episódios hipomaníacos inferiores ao critério
de quatro dias, estabelecido em classificações formais como
o DSM-IV. Esse trabalho, conduzido por um dos pesquisadores originais,
cuja pesquisa foi de grande influência na promoção
do conceito de distinção unipolar-bipolar, persuasivamente
questiona a necessidade de se aumentar o espectro de bipolaridade dos
casos graves (mania psicótica) aos casos leves de hipomania que
não atingem o “limiar” criteriológico formal.
É digno de nota que essas hipomanias sintomatologicamente atenuadas
ou leves - em associação com depressão – resultam
em conseqüências psicossociais adversas significativas.
A pequisa de gêmeos de Bertelsen e colegas (16) é uma das
mais contundentes linhas de evidência do conceito mais amplo de
bipolaridade – gêmeos monozigóticos discordantes para
transtorno de humor rigidamente definidos eram freqüentemente concordantes
para temperamentos com labilidade de humor (ciclotimia) e, menos freqüentemente,
psicose incongruente com o humor. Como os gêmeos em questão
fornecem os mesmos genes, os diagnósticos amplamente mais concordantes
dos extremos “temperamentais” e psicóticos do espectro
bipolar podem ser considerados como manifestações do mesmo
transtorno. Assim, candidatos propostos para inclusão em seu espectro
mais amplo de bipolaridade são:
· Transtorno esquizobipolar (ou transtorno bipolar denominado tipo
½, variedade em que a excitação maníaca ocorre
em associação com sintomas psicóticos incongruentes
com o estado de humor em uma intensidade além da permissível
ao contexto de transtorno bipolar do tipo I; esse diagnóstico costuma
se confirmar quando essa sintomatologia psicótica persiste após
a melhora dos sintomas maníacos) (17)
· Mania
· Depressões com hipomania (independentemente da duração)
ou hipomania farmacologicamente mobilizada
· Depressões em associação com temperamentos
ciclotímicos e hipertímicos
· Depressões recorrentes (pseudo-unipolar) com história
familiar de bipolaridade
· Depressões cíclicas responsivas ao lítio
(e por extensão a outros estabilizadores de humor)
Um estudo recente de Benazzi (18) demonstrou
que irritabilidade, distraibilidade e pensamento acelerado eram as características
hipomaníacas mais comuns durante a depressão, sobretudo
entre depressões bipolares do tipo II. Infelizmente, tais estudos
não despertaram interesse suficiente em sistemas nosológicos
oficiais ou na literatura clínica. Isso pode ser danoso à
prática clínica, pois esses são os vários
pacientes depressivos “unipolares” que se beneficiam pouco
com os antidepressivos e requerem estabilizadores de humor, antipsicóticos
ou eletroconvulsoterapia.
No estudo colaborativo nacional francês em depressão (EPIDEP)
(19), análises preliminares demonstraram que hipersonia e ideação
suicida eram mais comuns no transtorno bipolar tipo II do que em transtornos
unipolares (que apresentavam mais insônia).
Características clínicas
e familiares de diferenciação de depressões bipolares
e unipolares (20):
Bipolar Unipolar
História de mania ou hipomania Sim Não
Prevalência por sexo Igual Mulheres > homens
Idade de início Adolescentes, 3° e 4° décadas de
vida 4°, 5° e 6° décadas de vida
Episódios pós-parto Mais comuns Menos comuns
Aparecimento dos sintomas Agudo Mais insidioso
Número de episódios Numerosos Poucos
Duração dos episódios 3 a 6 meses 3 a 12 meses
Atividade psicomotora Retardo > agitação Agitação
> retardo
Sono Hipersonia > insônia Insônia > hipersonia
HF de transtorno bipolar Alto Baixo
HF de transtorno unipolar Alto Alto
A depressão parece ser a expressão
mais comum do espectro bipolar (20). De fato, o transtorno bipolar tipo
II parece ser atualmente o fenótipo mais comum de tal transtorno.
Diante disso, podemos levantar algumas
questões para o presente caso clínico:
A paciente poderia ter sido encaminhada previamente ao psiquiatra se tais
conceitos ampliados de bipolaridade fossem mais difundidos ?
O presente relato de caso demonstra claramente mudanças bipolares
do humor ao longo da evolução do quadro clínico-psiquiátrico.
No início predominam sintomas de transtorno de humor, depois, sintomas
psicóticos “positivos” e, por fim, sintomas psicóticos
“negativos”, quando se instala um maior deterioro psicossocial
e cognitivo.
Quanto ao transtorno esquizoafetivo, não
existe um estudo epidemiológico preciso e atual de incidência
ou prevalência dessa condição clínica em uma
população geral. Sabe-se que a variabilidade dos critérios
diagnósticos ao longo dos anos é um fator limitante para
estudos epidemiológicos mais consistentes sobre o tema.
Por outro lado, há vários cursos possíveis para a
esquizofrenia, e ela mesma representa um heterogêneo grupo de distúrbios,
o que dificulta a aplicação de uma definição
conjunta de curso e prognóstico (5). Esta afirmação
é reforçada pela dificuldade de se encontrar anormalidades
neurobiológicas definidas consistentes com a esquizofrenia (21).
Marneros desenvolveu todo um estudo em Colônia (22-27), Alemanha,
com pacientes que ele pôde examinar durante aproximadamente trinta
anos, e propôs um sistema diagnóstico muito interessante
para psicose esquizoafetiva. Sugere que pacientes esquizoafetivos possam
ter episódios puros, ou seja, só esquizofrênicos ou
esquizofreniformes em dado momento, assim como futuramente, ou no passado,
somente maníacos ou unicamente depressivos. Ou seja, ele sustenta
que a exigência existente na CID de simultaneidade de sintomas do
grupo esquizofrênico e do grupo afetivo não é importante.
Se adotarmos esses critérios diagnósticos de Marneros, a
estabilidade diagnóstica dos pacientes com transtorno esquizoafetivo
aumenta tremendamente. Se usarmos os critérios CID, sabe-se que
a estabilidade diagnóstica de um paciente que um dia recebeu diagnóstico
de transtorno esquizoafetivo não chega a 20%, ou seja, somando
todos os episódios dele, apenas 20% serão esquizoafetivos
pela CID. Marneros chegou a 80% com seus critérios. Além
disso, encontrou resultados interessantes quanto ao curso dos transtornos
similares, ainda ressaltando a importância do acompanhamento longitudinal
para a construção do diagnóstico final (28-31). A
importância do transtorno bipolar misto é óbvio, caso
considerarmos sua freqüência. De acordo com a definição
usada, 20-74% dos pacientes com transtorno afetivo têm transtornos
bipolares mistos (32).É interessante notar que esse achado tem
sido estável nos últimos cem anos. Kraepelin e Weygandt
concluíram, usando uma definição mais estreita, que
cerca de 20 % dos pacientes com transtorno afetivo do Hospital Psiquiátrico
de Heidelberg tinham estados mistos; usando uma definição
mais ampla, em cerca de 60%. Isso corresponde aos achados da maioria dos
autores modernos (33). Em estudos de Marneros de 1991 e 1996 (32) foi
percebido que a freqüência dos estados mistos, no âmbito
dos transtornos afetivos em geral e do transtorno esquizoafetivo, depende
da definição. Se o transtorno ou doença tiver que
ser monomorfo por um longo período de tempo, digamos 20 ou 25 anos,
durante o qual estados mistos ocorrem sempre, então tal "transtorno
bipolar misto" é bastante raro, cerca de 1% dos transtornos
afetivos e esquizoafetivos. Se, por outro lado, a ocorrência de
apenas um episódio misto durante todo o curso da doença
é suficiente, então, usando o critério DSM-IV, 40%
dos pacientes com transtornos afetivos e esquizoafetivos terão
estados mistos.
Em um estudo (30) longitudinal com 355 pacientes e tempo médio
de seguimento de 25,2 anos, foram encontrados os seguintes dados:
· Pacientes com episódio inicial esquizofrênico mostraram
a maior estabilidade: 90% não tiveram outro tipo de episódio.
· A maioria dos pacientes que sofreram um episódio inicial
de melancolia mantiveram o quadro unipolar ou desenvolveram sintomatologia
maníaca, sendo que apenas poucos sofreram episódios esquizoafetivos
ou esquizofrênicos.
· Pacientes com sintomatologia maníaca em um primeiro momento
tiveram um curso bastante instável e variável.
Estudiosos, como Marneros (27), criticam os atuais sistemas diagnósticos
como não sendo suficientes para definir os transtornos esquizoafetivos,
especialmente pelo déficit no eixo longitudinal. Transtornos esquizoafetivos
ocupam uma posição entre a esquizofrenia e os transtornos
“puros” de humor, especialmente no que diz respeito ao prognóstico
e variáveis de pré-morbidade e sócio-demográficas.
O mais grave tipo de transtorno esquizoafetivo é o tipo misto,
o que tem, portanto, um prognóstico comparativamente pior. Tais
pacientes se aposentam mais freqüentemente e mais precocemente do
que pacientes com transtorno bipolar (27). Outros fatores de mau prognóstico
do transtorno esquizoafetivo são ausência de episódio
melancólico puro, sintomas esquizofrênicos de 1a ordem de
Kurt Schneider, alto número de episódios e alta freqüência
anual de episódios, além de personalidade pré-mórbida
astênica e/ou com baixa auto-confiança(23). Vale ressaltar
que vários desses fatores estão presentes no relato de caso
descrito inicialmente, além da desfavorável evolução
clínica da paciente.
A presença de aspectos psicóticos no transtorno depressivo
maior reflete uma doença grave e é um indicador de mau prognóstico(34).
O diagnóstico diferencial pode ser extremamente difícil
em alguns casos.
Os limites entre transtornos afetivos e esquizofrênicos são
imprecisos, estando a depressão psicótica próxima
desta zona de inter-relação. Alguns autores colocam a depressão
psicótica dentro do chamado espectro esquizofrênico, junto
com esquizofrenia, quadros esquizoafetivos, e outras psicoses. Em um estudo
de dez anos de seguimento, observou-se que os pacientes inicialmente diagnosticados
como portadores de transtorno esquizoafetivo tinham um prognóstico
melhor que os pacientes com esquizofrenia e pior que os pacientes com
depressão. O mesmo trabalho observa que os resultados obtidos são
compatíveis com uma visão dimensional dos sintomas do curso
do transtorno esquizoafetivo (19). Outros estudos corroboram esses dados
(28,35)
Os quadros depressivos psicóticos têm baixa resposta aos
antidepressivos e antipsicóticos utilizados separadamente, devendo
a associação de ambos ser utilizada (5).
Um efeito da conceituação de Bleuler foi a ampliação
do número de pacientes que preenchem os critérios para esquizofrenia.
Entretanto, desde o DSM-III, a visão kraepeliniana prevaleceu,
sendo considerada por muitos como mais objetiva e mensurável. Todavia,
uma aderência rígida ao DSM-IV parece levar ao sub-diagnóstico
da esquizofrenia (36) por não considerar a alteração
da afetividade como deveria ser feito. Por outro lado, a supervalorização
dos sintomas de primeira ordem pode proporcionar precipitadamente o diagnóstico
de esquizofrenia em um quadro provavelmente afetivo, como o do presente
relato.
A distinção entre sintomatologia negativa e positiva na
esquizofrenia, assim como se a alteração é primariamente
do afeto ou do humor não é precisa em diversos casos. Forrester
e cols (37) estudaram a estabilidade do diagnóstico para pacientes
admitidos sucessivas vezes com quadros psicóticos e observaram
altos níveis de estabilidade para esquizofrenia (58 a 98%), níveis
moderados para transtornos afetivos (24 a 83%), baixos níveis para
condições psicóticas não orgânicas (27
a 54%) e psicoses atípicas (27 a 53%) e muito baixos níveis
para transtorno esquizoafetivo (5 a 39%), questionando o valor preditivo
dos três últimos diagnósticos.
Schwartz e cols (36) também observaram diferentes níveis
de estabilidade diagnóstica no seguimento de 6 meses e 2 anos após
admissão com quadro psicótico. Em quadros inicialmente diagnosticados
como esquizofrênicos, o diagnóstico manteve-se em 92% dos
pacientes, para transtorno bipolar em 83%, depressão maior em 74
%, psicose não especificada em 44%, transtorno esquizoafetivo em
36% e psicose breve em 27% dos pacientes.
Quanto à dificuldade do diagnóstico diferencial, Herbener
e cols observaram que, embora a sintomatologia negativa seja mais comum
no transtorno esquizoafetivo e na esquizofrenia do que em deprimidos,
estes últimos também costumam apresentar ampla sintomatologia
negativa, sugerindo um modelo de doença mental em que os sintomas
negativos sejam comuns a todos os quadros (38).
O diagnóstico de transtorno esquizoafetivo
carrega em si a falta de certeza e de proeminência tanto de características
afetivas quanto de tipo esquizofrênicas. Permanece ainda incerto
se o prognóstico do transtorno esquizoafetivo é mais similar
à esquizofrenia ou aos transtornos depressivos (34).
Pacientes com esquizofrenia paranóide e transtorno esquizoafetivo
parecem ter um distúrbio consistente da percepção
corporal, o qual pode indicar uma disfunção no processamento
de informações sensoriais (39). Risch e cols observaram
que o uso de donepezil em pacientes psicóticos estabilizados com
olanzapina aumenta a ativação do córtex pré-frontal
e gânglios da base, melhorando as funções cognitivas
no transtorno esquizoafetivo, além de propiciar melhora dos sintomas
depressivos, habilidades funcionais e qualidade de vida (40).
A causa do transtorno esquizoafetivo é desconhecida, mas quatro
modelos conceituais foram formulados: 1) ele pode ser um tipo de esquizofrenia
ou transtorno do humor; 2) pode representar uma combinação
de esquizofrenia e de transtorno do humor; 3) pode ser um terceiro tipo
distinto, de psicose, que não está relacionado nem com a
esquizofrenia nem com um transtorno do humor; 4) talvez, mais provavelmente,
compreenda um grupo heterogêneo, representando as três primeiras
possibilidades (5).
A hipótese de que os pacientes com transtorno esquizoafetivo têm
tanto esquizofrenia quanto um transtorno de humor é insustentável,
pois a co-ocorrência calculada dos dois transtornos é muito
mais baixa que a incidência do transtorno esquizoafetivo (5).
Uma última observação importante consiste em que
Meszaros e cols observaram alterações genéticas específicas
no gene do receptor D3 da dopamina no transtorno esquizoafetivo (41).
Tentando resumir esquematicamente, pelo menos em parte, a discussão
teórica que foi realizada até agora, procuraremos representar
graficamente os importantes conceitos anteriores através do diagrama
que vem a seguir.
Diagrama Bidimensional para Quadros Clínicos
Afetivos e/ou Psicóticos
A evolução clínica
da paciente M.C., cujo caso foi relatado, pode ser esquematizada com deslocamentos
tanto no eixo y quanto no eixo x, com uma discreta predominância
de deslocamentos no eixo y, o que nos faz pensar em um quadro com um forte
componente afetivo.
Ao longo da evolução do quadro clínico, as viragens
de humor cursaram com o aumento da psicose e do deterioro, com o deslocamento
para a direita ao longo do eixo x.
O afastamento do ponto 0 (origem dos eixos) pode ser um preditor do prognóstico,
sobretudo se ocorrer ao longo do eixo x.
A área total do “transtorno esquizoafetivo” é
pequena e possível de acomodar alterações de humor
ou de sintomas psicóticos apenas em poucos casos ou durante um
pequeno espaço de tempo.
Há um ponto de contato entre alterações do humor
(exaltado ou deprimido) que pode apresentar sintomas psicóticos
sem, no entanto, chegar ao espaço "esquizofrenia". Esse
ponto de contato faz parte do espaço "transtorno esquizoafetivo".
Vale ressaltar, ainda, que o “transtorno bipolar de humor”
tem uma maior área nos extremos de sintomas afetivos, depressivos
ou maníacos, mesmo com sintomas psicóticos, sem adentrar
no espaço “esquizofrenia”. (Fábregas, 2003)
Em relação ao tratamento
do transtorno esquizoafetivo, alguns estudos observaram uma tendência
de uso de divalproato de sódio no lugar de lítio em pacientes
com diagnóstico de transtorno esquizoafetivo, além da tendência
de uso de antipsicóticos atípicos (42,43).
Na manutenção do tratamento do transtorno esquizoafetivo
o ECT coloca-se como uma possibilidade eficaz (44).
Diversos estudos dão suporte ao uso de risperidona como primeira
escolha no curso de transtornos psicóticos, dada a sua relação
risco/benefício (45-47).
Janicak e cols (48) não evidenciaram diferenças na melhora
dos sintomas psicóticos, em comparação do haloperidol
com a risperidona, embora os pacientes tratados com haloperidol tivessem
um maior número de efeitos colaterais e abandono de tratamento.
Em relação aos sintomas depressivos, houve uma melhor resposta
também com a risperidona.
Estudos atuais vêm investigando o uso de ziprasidona no transtorno
esquizoafetivo, enfatizando sua efetividade e seus poucos efeitos colaterais
(49).
A olanzapina possui evidências atuais de maior efetividade na redução
de sintomas depressivos e melhora da função cognitiva, particularmente
no transtorno esquizoafetivo (50).
Entretanto, comparando olanzapina, clozapina, risperidona e haloperidol,
a diferença de tratamento a favor dos atípicos foi estatisticamente
significativa, embora clinicamente modesta quanto ao resultado do tratamento.
A clozapina foi a droga mais efetiva para sintomas negativos (45), permanecendo
como ‘padrão ouro’ para quadros refratários
(51).
Concluindo, o diagnóstico diferencial
em quadros psicóticos atípicos pode ser de difícil
definição, devendo ser sempre prospectivo e sendo o clínico
permanentemente obrigado a reconsiderar o diagnóstico inicial,
especialmente quando esse for de transtorno esquizoafetivo. Sub-diagnósticos
de transtorno afetivo bipolar e superdiagnósticos de esquizofrenia
podem estar acontecendo em casos semelhantes ao relatado neste artigo,
onde o acompanhamento longitudinal, a observação fenomenológica
isenta e uma boa história clínica são importantes
para o esclarecimento diagnóstico.
Entretanto, após mais de duas décadas de experiência
clínica, o presente caso incita-nos a pensar que - considerando
todas as nuances psicopatológicas ao longo de sua evolução
e o próprio deterioro que se instalou progressivamente - certas
formas clínicas mistas com sintomas psicóticos abundantes
poderiam representar um verdadeiro ponto de contato, fenomenológico
e quiçá nosológico entre a Esquizofrenia e a Psicose
Maníaco-Depressiva no âmbito de uma clássica visão
kraepeliana. Os estudos atuais, como já vimos, têm manifestado
uma clara tendência à valorização daquelas
primeiras concepções kraepelianas, em uma espécie
de retorno aos conceitos clássicos. Somente novos estudos epidemiológicos,
genéticos e neurobiológicos poderão esclarecer os
verdadeiros limites e interseções nosológicas entre
as várias formas clínicas que se nos apresentam no dia a
dia da prática psiquiátrica e, assim, agilizar e aprimorar
o diagnóstico e o tratamento desses pacientes.
Summary:
In the present article the authors describe
a case report of a thirty year old female patient that at first showed
a mixed bipolar disorder and later developed an unfavorable way of psychotic
symptoms and mental damage, leading to a mixed diagnosis of mixed schizoaffective
disorder. The authors discuss about the difficulties in differential diagnosis
and prognosis among mixed mania with psychotic symptoms, schizoaffective
disorder and schizophrenia, throughout a review of studies about bipolar
spectrum and other clinical conditions, emphasizing the need of an accurate
diagnosis of these cases and an appropiate and early therapeutic approach.
Key Words:
Schizoaffective disorder
Mixed mania
Schizophrenia
Bipolar disorder
Bipolar spectrum
Psychopathology
Classification
Diagnosis
Prognostic
Treatment
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