GUSTAVO FERNANDO JULIÃO DE SOUZA

Um Kraepelin Mineiro


Kraepelin nasceu no mesmo ano de Freud, 1856, mas não se conheceram, nem comentaram a obra um do outro. Todo mundo acha que Freud continua aí vivíssimo e que Kraepelin, como Inês, é morto. Ledo e ivo engano. Freud é que se encontra enterrado sob a avalanche provocada por Lacan, que usou o nome do mestre para impor a sua teoria. Resultado: não existem mais freudianos, virou tudo lacaniano. Kraepelin era conhecido pela refinada observação e insuperável capacidade de sistematização do material observado. O arcabouço da nosologia e nosografia psiquiátricas ao longo do século XX, incluídos CIDs e DSMs, tem a ver com a taxonomia do psiquiatra alemão que até hoje não foi superada.

Mas o que isso tem a ver com o nosso Gustavo? Somente isto: Gustavo é, guardando as devidas proporções, uma espécie de Kraepelin mineiro. Tem capacidade de observação e sistematização similares. É o único psiquiatra mineiro, que eu saiba, que descreveu e classificou um quadro clínico: os "Estados Psicóides". E tem uma obra de psicopatologia em construção, com títulos tais como "Uma Visão Dimensional dos Transtornos Psicóticos: Da Tipicidade à Atipicidade", " As Psicoses Endógenas: uma Visâo Fenomenológico-Dinâmica", entre outros (vide entrevista). Em uma palavra, é um mestre.

Discordo dele quanto à sua avaliação de que a psiquiatria mineira vai bem obrigado. Não vai. Como pode estar bem uma psiquiatria em que a presidente (sub judice) da Associação Mineira de Psiquiatria escreve um artigo no qual insinua que a psiquiatria, enquanto Ciência, é prejudicial ao doente ("A posição da psiquiatria como Ciência é, cada vez mais, forcluir o sujeito", diz ela)? Nessa toada, o vice-presidente da citada instituição escreve, na mesma publicação, que "Não há dois esquizofrênicos iguais", afirmação acaciana que não considera que, igualmente, não existem dois cardiopatas iguais e nem por isso os cardiologistas deixam de utilizar a Ciência no tratamento desses doentes, tendo sempre em mente o que a medicina sabe há séculos: que concretamente não existem doenças e sim doentes. Como pode estar bem a psiquiatria mineira se a Escola de Saúde de Minas, repito Escola de Saúde, anuncia um curso de saúde mental estruturado em Foucault, cujas teorias psiquiatricidas (apud H. Ey) se baseiam no jargão de que o discurso médico se apropriou da loucura, como se o mesmo não tivesse ocorrido com as cardiopatias, as endocrinopatias, as neuropatias, as pneumopatias et caterva, que também foram "apropriadas" pela medicina, e com isso a expectativa de vida, que há 150 anos era de 25 anos, passou para 75 anos neste nosso século, um claro e evidente benefício aos "sujeitos" que compõem a população mundial. Para não me extender muito, esse mesmo grupo, que doravante chamarei de Movimento Antipsiquiátrico Mineiro (MAM), está no poder também nas secretarias de saúde, numa longa marcha, imperceptível mas contínua, que engendram para dentro do aparelho do Estado (conforme queria Gramsci). E la crème de la crème dos psiquiatras mineiros, tais como Jarbas Portela, Paprocki, Delcir da Costa, Baggio, Guilherme Lucena, Hélio Tavares, Fábio Rocha, Fábio Munhós, Hilbene Galizzi, Viotti, o próprio Gustavo, e outros tantos que, por falta de espaço, vou cometer a indelicadeza de não citar, não são chamados a opinar sobre as questões cruciais da nossa disciplina, são escamoteados, desprezados em favor de um discurso ideologizante tão vazio quanto repetitivo.

A psiquiatria mineira se encontra estrangulada pelo MAM, — e tu, Gustavo, e a residência do HCL são um oásis no meio do deserto, o oxigênio que nos resta. Que tenham vida longa.

Entrevista para o Jornal Mineiro de Psiquiatria
Entrevistador - Humberto Campolina


JMP: Fale de sua trajetória profissional e sua situação atual na psiquiatria.

Gustavo: Formei-me em 1974 pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, fazendo, em seguida, Residência de Psiquiatria no Instituto Raul Soares. Trabalhei no INAMPS durante muitos anos como médico de ambulatório, membro da Comissão de Psiquiatria e supervisor hospitalar, além de prestar assistência a pacientes previdenciários internados na Casa de Saúde Santa Maria durante mais de quinze anos. Também trabalhei durante vinte anos no Instituto Raul Soares, atendendo ora no ambulatório, ora nas enfermarias. Em 1993 fui convidado pelo Prof. Juarez de Oliveira Castro para ser preceptor da Residência de Psiquiatria da UFMG, função que continuo exercendo. Por outro lado, depois de colaborar no ensino da graduação do curso médico durante esses anos, atualmente venho me dedicando mais à Residência, consultório particular e à implantação de um novo ambulatório especializado destinado ao ensino e pesquisa, o COMIMP (Ambulatório de Compulsividade e Impulsividade). Pretendo que esse ambulatório especializado, vinculado ao Ambulatório de Ansiedade e Depressão, atenda casos do espectro obsessivo, tais como TOC, tricotilomania, jogo patológico, compulsões alimentares e sexuais, transtorno dismórfico corporal, etc.

JMP: O que você pensa da psiquiatria mineira?

Gustavo: Quanto à Psiquiatria em si, acredito que vai muito bem. Basta pesquisar e estudar inúmeros temas para constatar-se os avanços inestimáveis de nossa especialidade, principalmente nas áreas de psicofarmacologia, genética e pesquisa nosográfica e que têm contribuído para aliviar o sofrimento de milhões de pessoas em todo o mundo. Desse modo, não se pode falar, em sã consciência, da Psiquiatria mineira como uma atividade médica "dividida " ou "cindida". O que existe, na realidade, é uma grande maioria de psiquiatras mineiros que procura exercer dignamente sua profissão, trabalhando corretamente, estudando e se atualizando, apesar dos baixos salários, das precárias condições de trabalho, das pressões da sociedade e das aviltantes remunerações de prestação de serviço a convênios. De outro lado, situam-se certos grupelhos, verdadeiras "panelinhas", que se especializaram em fabricar supostas crises da Psiquiatria em nosso meio. Na verdade, são agremiações ideológicas que pregam e perseveram, à exaustão, sobre o "fim" da Psiquiatria, a nocividade dos hospitais psiquiátricos e dos psicofármacos, dentre outras pérolas de sabedoria que vêm copiando, há muito, de intelectuais de ocasião, tais como Foucault, Lacan, Althusser e Basaglia, todos eles, na atualidade, relegados ao mais completo esquecimento. Evidentemente, esses grupelhos festivos também estão condenados a uma rápida extinção, simplesmente porque seu discurso é anacrônico, arcaico e destituído de qualquer vestígio de seriedade.

JMP: Como você vê a situação das residências de psiquiatria de MG?

Gustavo: Parece que o fato de que Residências de Psiquiatria em Minas Gerais tenham nascido e se desenvolvido à margem da Universidade e desvinculadas do ensino acadêmico propiciou, após certo tempo, seu completo isolamento da comunidade científica. Desse modo, a maioria dos professores passou a não ter qualquer compromisso com a ciência ou com uma mínima postura científica exigida, abandonando, de vez, seu dever de ensinar com seriedade e de formar psiquiatras competentes e atualizados. Ao contrário, começaram a se dedicar a toda sorte de diletantismos filosóficos , a charmosas hermenêuticas semióticas e a palavras de ordem ideológicas, tudo isso ao sabor das últimas modas intelectuais de Paris. Aparentemente, limitaram-se a pregar aos residentes uma estranha doutrina, uma espécie de miscelânea de dogmas políticos esquerdistas, máximas e adágios de gurus idolatrados e a ininteligível psicanálise lacaniana, além de banirem as terapêuticas biológicas do ensino médico arbitrariamente, a pretexto de defender os direitos humanos dos doentes mentais. Por exemplo, a eletroconvulsoterapia(ECT) é, literalmente, um tema-tabu e sua realização é praticamente impossível em alguns hospitais públicos. Eu, mesmo, já tive a oportunidade de observar pacientes catatônicos internados em um desses hospitais, a cargo da Residência, numa situação indigna e humilhante, que contrariava os mais elementares princípios de cidadania e de direitos humanos ou, mesmo, de caridade. Permaneciam imóveis no leito, estuporosos, alucinados, em grande sofrimento, com dolorosas e incômodas sondas, enquanto os residentes sequer cogitavam de realizar a terapêutica indicada, isto é, ECT. Considero muito grave uma Residência de Psiquiatria não ensinar a verdadeira Psiquiatria, mas, ao contrário, escamotear a verdade, doutrinando os jovens alunos com uma mixórdia de idéias e preceitos confusos e estapafúrdios, incompatíveis com a realidade clínica cotidiana e com a própria vida real.

JMP: O que tem a dizer aos jovens estudantes de medicina em relação à formação básica em psiquiatria e aos jovens psiquiatras em relação à especialização?

Gustavo: Em primeiro lugar, além de estudar a fundo os autores clássicos da Psiquiatria, creio que é necessário ler os clássicos da Literatura, tais como o nosso Machado de Assis, Eça de Queiroz, Flaubert, Dostoiévski, Stendhal e muitos outros. Nessas grandes obras está catalogado o inventário universal das paixões humanas, dos tipos caracterológicos, dos temperamentos, das reações vivenciais, dos sonhos, das fantasias, enfim, da saga da condição humana. Por outro lado, tenho a convicção de que a entrevista psiquiátrica tradicional jamais será substituída inteiramente pelas entrevistas estruturadas ou pela mensuração de marcadores biológicos. O médico sempre deverá rastrear e pesquisar todos os dados possíveis a respeito de seu paciente e isso só poderá ser obtido através de um relação médico-paciente alicerçada na aliança terapêutica, isto é, por meio de um relacionamento que tenha como princípios a empatia, a honestidade, a confiança e a cooperação. Somente dessa maneira, ou seja, conversando e interrogando o seu paciente com cuidado, tato, paciência e respeito, o psiquiatra conseguirá atingir um grau satisfatoriamente fidedigno de penetração psicológica e apreensão fenomenológica de suas vivências.


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a `Lei Carlão' reza que a doença mental pode desaparecer pela simples promulgação de um decreto. Trata-se de um grande absurdo, de um equívoco mal intencionado que prejudicará os pacientes psiquiátricos, privando-os de assistência especializada.


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JMP: Certa vez um colega afirmou que mais cedo ou mais tarde o psiquiatra retomaria o lugar do antigo médico de família, particularmente nos grades centros. Você vê alguma lógica nisso?

Gustavo: Sim, sem dúvida. A ruptura brutal dos laços de amizade e de parentesco, a diluição de valores éticos e morais, tais como solidariedade e altruísmo, a desconfiança, o desapego, o egoísmo e a solidão consistem nos traços psicológicos comuns decorrentes do processo de urbanização rápido e maciço que vem ocorrendo em proporções nunca antes imaginadas. Trata-se de uma condição sociológica desfavoravelmente desadaptativa para o ser humano e é natural que haja a tentativa compensatória de recompor o equilíbrio inter-relacional em termos de um padrão comunitário homeostático, agora distante e irremediavelmente perdido. Assim, é comum observar-se, na clientela ambulatorial, uma configuração `em rede', ou seja, o médico atende um cliente e, gradualmente, passa a assistir seus amigos e familiares, à guisa do modelo comunitário original. Por esta razão, é de se esperar que o psiquiatra assuma o papel de `médico de família' pois partilha, como nenhum outro, a intimidade das pessoas, sendo depositário de seus segredos, conflitos, desejos e fantasias.

JMP: O que é a campanha "adote um aluno da UFMG"?

Gustavo: Os alunos do 5º Período do curso de graduação da Faculdade de Medicina da UFMG têm a disciplina obrigatória `Saúde Mental I' (Semiologia e Nosologia Psiquiátricas) constituída, somente, de aulas teóricas. Sempre foi nossa preocupação dotar o curso de algum tipo de prática clínica, motivo pelo qual o Prof. Maurício, chefe da disciplina e sempre empenhado em aprimorar a formação técnica dos alunos, recentemente teve a idéia de firmar convênio com instituições hospitalares e profissionais idôneos e de competência reconhecida no sentido de possibilitar o contato dos acadêmicos com pacientes psiquiátricos. Creio que será a solução para o problema, tendo em vista que a UFMG, infelizmente, ainda não conta com hospital psiquiátrico próprio.

JMP: Por que você não fez o caminho de todo psiquiatra da nossa geração, isto é, não usou a psiquiatria com escada para subir no estribo da psicanálise? Aproveitando esta pergunta, pra quem você indicaria análise?

Gustavo: Sempre considerei a teoria freudiana extremamente atraente e instigante. É a verdadeira teoria do conhecimento do homem, legítima herdeira da episteme socrática, que revolucionou e transformou a civilização ocidental. Entretanto, apesar de me haver dedicado ao seu estudo durante breve período, percebi logo que ela não seria suficiente para responder todas minhas dúvidas e indagações a respeito do adoecer psíquico. Creio que não suportaria nenhum cárcere teórico a limitar-me e estreitar-me a visão crítica dos fenômenos psicopatológicos. Então, passei a aprofundar-me no estudo da Antropologia Filosófica, Psicopatologia e outras áreas, como Mitologia, Etologia, Neurobiologia e dedicar-me mais à clínica psiquiátrica. Por outro lado, sempre me considerei essencialmente médico, no que se refere à gratificação de curar, de aliviar o sofrimento alheio, da alegria de presenciar a dissipação dos sonhos tormentosos e sombrios dos pacientes psicóticos e testemunhar seu retorno à luminosidade do reencontro com a realidade. Atualmente, considero que muitos pacientes distímicos, anancásticos e com transtornos `borderline' e dependente da personalidade podem favorecer-se muito com psicoterapia de orientação analítica, associada, naturalmente, à farmacoterapia específica.

JMP: Você fez análise? Gustavo: Na época em que me formei, submeter-se à análise era quase um pré-requisito para se começar uma vida profissional. Mais, diria que era uma espécie de salvo-conduto para a felicidade terrena e para a integridade da saúde mental. Pairava no senso comum uma vaga concepção de eugenia psíquica, uma vívida expectativa de salvação da alma, de redenção de todos os pecados, travestidos de `conflitos intrapsíquicos'. A psicanálise ainda vivia seu período romântico, era um mito dominante e altamente polarizado, esperava-se muito dela e eu, naturalmente, candidatei-me a conseguir o perdão. Por outro lado, era demasiadamente tímido e inibido. O que posso dizer é que tive muito boas conversas com os meus dois psicanalistas, ambos pessoas inteligentes e afáveis.


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Evidentemente, esses grupelhos festivos (que pregam sobre o fim da psiquiatria) também estão condenados a uma rápida extinção, simplesmente porque seu discurso é anacrônico, arcaico e destituído de qualquer vestígio de seriedade.


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JMP: O Movimento Antimanicomial (e seu subproduto mais conhecido, a Lei Carlão) é bom ou ruim para o doente mental?

Gustavo: Costumo dizer que o movimento antimanicomial foi uma espécie de `livro vermelho' da Psiquiatria. Sabe-se que os chineses, durante a época da Revolução Cultural maoísta, acreditavam que ele podia curar dores de cabeça e achaques através do toque com as regiões afetadas do corpo. De modo semelhante, os seguidores dessa ideologia parecem acreditar, piamente, que a extinção dos hospitais psiquiátricos representará o advento do paraíso para os doentes mentais. Pregam que os pacientes são torturados e maltratados nos hospitais e que as doenças mentais não existem, sendo meras invenções da indústria farmacêutica. Trata-se de uma concepção ingênua, oriunda do movimento contracultural dos anos 60 e que, já há muito tempo, não é mais levada a sério no meio intelectual e pela comunidade científica mundial. Entretanto, é lamentável presenciar-se verdadeiros desfiles de pobres doentes mentais nas passeatas do movimento, fantasiados como bobos da corte, indefesos e nitidamente desassistidos. De maneira idêntica, a `Lei Carlão', inspirada na mesma doutrina, reza que a doença mental pode desaparecer pela simples promulgação de um decreto. Trata-se de um grande absurdo, de um equívoco mal intencionado que prejudicará os pacientes psiquiátricos, privando-os de assistência especializada. Além disso, a lei coloca a prática psiquiátrica sob suspeição, praticamente extinguindo os recursos terapêuticos biológicos e submetendo a conduta médica ao patrulhamento de outros profissionais leigos. Em suma, é uma lei paranóide e surrealista e , acima de tudo, ilegal e inconstitucional.

JMP: Sabemos que você mais o professor Viotti foram duas pessoas extremamente presentes na questão de Lei Carlão, tendo inclusive participado de debates na Assembléia Legislativa. Conte-nos essa história.

Gustavo: O Prof. Maurício e eu fomos, por duas vezes, representar a Universidade Federal em debates na Assembléia Legislativa nas ocasiões cruciais para a aprovação da `Lei Carlão'. Como, estranhamente, a Universidade não havia sido convidada para a elaboração da lei, a Comissão de Saúde da Assembléia, que iria votá-la, solicitou subsídios técnicos e científicos para analisar melhor a matéria. Lembro-me que eu e o Maurício, certa feita, ficamos trabalhando durante mais de 24 horas ininterruptamente, redigindo a primeira versão do Substitutivo do Deputado Hely Tarquineo, instrumento jurídico que almejava coibir os abusos e arbitrariedades contidas na `Lei Carlão'. Para isso, coletamos extensa bibliografia atualizada dos principais autores da área da Psiquiatria contemporânea, amplamente reconhecidos pela comunidade científica mundial, chegando a distribuir cópias de artigos científicos sobre Eletroconvulsoterapia e Psicocirurgia para cada parlamentar membro da Comissão de Saúde. O debate final, realizado no auditório da Assembléia lotado por uma platéia com mais de trezentas pessoas, todas partidárias da `Lei Carlão', foi decisivo. Tivemos que enfrentar vaias e assobios, mas valeu a pena. Conseguimos convencer os parlamentares que saúde mental é coisa séria e de interesse público, tanto que a referida lei, de início com aprovação praticamente garantida, até hoje ainda não foi regulamentada.

JMP: Fale sobre suas obras em psicopatologia, que parece ser uma paixão sua.

Gustavo: Na verdade, muito mais que a psicopatologia, minha paixão consiste em especular sobre as raízes biológicas filogenéticas e antropológicas do adoecer psíquico. É simplesmente fascinante constatar que os achados fenomenológicos presentes nos quadros psicóticos e no transtorno obsessivo-compulsivo, principalmente, correspondem a prováveis comprometimentos de estruturas psíquicas filogeneticamente arcaicas. A propósito disso, foi com muita satisfação que, recentemente, acompanhei o lançamento do livro "Consiliência _ A Unidade do Conhecimento" de E. O. Wilson, respeitado pesquisador americano e que tem provocado extrema repercussão no meio científico mundial. A obra postula alguns princípios, por exemplo, `regras epigenéticas' (algoritmos inscritos no cérebro pelo código genético da espécie humana, que estruturam, limitam e condicionam a variação individual e cultural) que correspondem às minhas concepções teóricas sobre a estruturação do psiquismo, postulações que venho estabelecendo há cerca de quinze anos. Meus trabalhos, quer sejam, "Simbolização: Uma Síntese Sócio-Antropológica e Psicológica" , "Considerações Gerais sobre as Neuroses: Uma Visão Fenomenológico-Dinâmica" , "As Psicoses Endógenas: Uma Visão Fenomenológico-Dinâmica" e "Uma Visão Dimensional dos Transtornos Psicóticos: Da Tipicidade à Atipicidade" , foram construídos a partir da prática clínica fenomenológica aliada a postulados da Antropologia Filosófica e Cultural, Psicologia Analítica e Psicobiologia, sempre procurando configurar um entendimento plausível dos fenômenos do adoecer psíquico.

JMP: Em relação ao que você denominou "Estados Psicóides", os "filtros" ou "prismas caracteriológicos" têm a ver com o que antigamente se chamava "patoplastia"?

Gustavo: Sim, mas até certo ponto. O conceito de `patoplastia' correspondia, tradicionalmente, a achados fenomenológicos complementares algo discordantes da patologia de base, ou seja, havia o registro clínico de manifestações psicopatológicas secundárias que, de algum modo, destoavam daquelas oriundas da nosologia primária. Consistiam em registros fenomenológicos fortuitos e casuais, praticamente intuitivos e acessórios, desprovidos de nexo teórico bem fundamentado com o transtorno psiquiátrico principal. Ao contrário, o que venho propondo é um modelo teórico específico pautado na simultaneidade, ao invés de complementaridade. Assim, em minha concepção, a morfologia fenomenológica final de muitos quadros clínicos, principalmente de transtornos afetivos, corresponde ao desencadeamento simultâneo de dois mecanismos fisiopatológicos distintos mas que se entrelaçam e amalgamam, ou seja, o "morbus" primário, transtorno de base e o "morbus" secundário, equivalente à exacerbação ou ampliação do transtorno e (ou) traços caracterológicos ("filtro caracterológico"). Dessa maneira, creio que tal modelo teórico pode ser útil na prática clínica cotidiana, principalmente no que se refere aos quadros psicóticos atípicos, desde que o médico poderá entender e até prever a morfologia fenomenológica final que se apresenta em muitos casos.

JMP: Você casou-se "n" vezes. Afinal, essa experiência o fez ficar contra ou a favor do casamento?

Gustavo: Oscar Wilde dizia que os homens se casam por cansaço, as mulheres por curiosidade e ambos ficam decepcionados. Embora ele possa ter razão, é também certo que todos nós perseguimos, incansável e curiosamente, essa tal quimera chamada felicidade, tão distante quanto um nebuloso horizonte inatingível. E viva o casamento!