Lições de Psicopatologia da Clínica Cotidiana: Dois Casos Clínicos

O exercício do diagnóstico na clínica psiquiatra do dia a dia não costuma ser tarefa das mais fáceis. Ao contrário, consiste em um trabalho árduo, geralmente de singular complexidade, devido ás inúmeras variáveis envolvidas no quadroclínico e que o profissional é obrigado a avaliar cuidadosamente. Assim, para cada caso estudado, personalidade pré-mórbida, temperamento, gostos, preferências, visão de mundo, hábitos, peculiaridades individuais, história pessoal, incluindopassado médico, eventos biográficos importantes, antecedentes familiares, estressores psicossociais eventuais, situação conjugal e familiar, desempenho social e ocupacional, além de elementos psicodinâmicos detectáveis, consistem em dadossemiológicos indispensáveis para a construção de um raciocínio clínico sólido e plausível. Somente dessa maneira, o psiquiatra terá condições de formular um diagnóstico adequado ao caso em estudo, traçando, consequentemente, um planejamento terapêuticoque se mostre eficaz e resolutivo até onde seja possível. Além disso, é essencial uma observação minunciosa e acurada do paciente sob a forma de uma prática contínua e permanente de apreensão fenomenológica de suas vivências, de captação empáticade seus estados psíquicos e do registro sensível e pormenorizado de elementos semiológicos pertencentes ao âmbito de sua apresentação, contato verbal, consiência objetal e do eu, afetividade, juízos, crítica, pensamento, sensopercepção, memória e de todas as demais funções psíquicas. É necessário ter-se sempre em mente que a Psiquiatria em nada difere das outras especialidades médicas quanto à necessidade intrínseca de se formular, sempre, uma hipótese diagnóstica para todos os casos, por mais complexos que possam parecer à primeira vista. Infelizmente não são poucos os casos nos quais o estabelecimento do diagnóstico parece dever-se apenas a uma necessidade burocrática de preenchimento correto da folha de anamnese ou de guia para convênio e que, na maioria das vezes, são tratados sintomatologicamente, ora com associações de polifarmácia excessivas e disparatadas e ora com monoterapias negligentes e insatisfatórias. Ademais, parece prática comun em nosso meio a vinculação frequente de termos tais como "não especificado" e "outros" ao diagnóstico estabelecido, mesmo após um período de observação da evolução clínica que seria sufiente para o esclarecimento final da verdadeira natureza do transtorno psiquiátrico.

No entanto, se por um lado, os atuais sistemas classificatórios em psiquiatria (1) representaram uma grande aquisição para a instrumentalização do diagnóstico, objetivando maior especificidade e confiabilidade, por outro, de certo modo automatizaram a atividade clínica do psiquiatra, empobrecendo sua concepção do adoecer psíquico, tornando-a estática e compartimentada. Desse modo, o profissional, diante de determinados casos, poderá ter a sua sensibilidade de apreensão fenomenológica e o seu raciocínio clínico algo imobilizados pelas referências taxonômicas rígidas desses manuais de classificação, levando-o, muitas vezes, a formular diagnósticos equivocados. Para agravar ainda mais essa situação, nossas bibliotecas acadêmicas estão cada vez mais desprovidas de obras daqueles autores clássicos da psiquiatria - privilegiados observadores que foram do curso evolutivo natural dos transtornos por modernos tratados que, no afã da objetividade classificatória, negligenciam o ensino dos alicerces teóricos da psicopatologia fenomenológica. Assim como seria de se esperar, os jovens estudantes de psiquiatria têm dificuldades de entender certas alterações psiquiátricas básicas e  rotineiras, como por exemplo o conceito de 'delirium', o que não ocorreria caso, para o conceito em questão, fosse suficientemente esclarecida a definição de alteração de nível da consciência como um distúrbio de uma função psíquica.

De qualquer maneira, como já ressaltaram KRAEPELIN e JASPERS (2) a respeito da importancia da apresentação e análise de casos clínicos, resta esperar que os relatos de casos e sua subsequente discussão teórica prestem-se a ampliar, flexibilizar e enriquecer a visão psicopatológica e fenomenológica do psiquiatra em relação aos casos por clínico e propiciando-lhe maior criatividade, precisão e resolutividade em suas prescições e condutas terapêuticas de modo geral. Inspirado por essas considerações, passarei, a seguir, à apresentação e discussão de dois casos clínicos que, pelo menos de início, tiveram algumas dificuldades diagnósticas e de posterior conduta terapêutica e que podem servir como referências para outros casos controverditos do dia a dia.

CASO 1:

A.M.V. é uma senhora de cinquenta anos e que foi por mim atendida pela primeira vez no consultória em 7/5/80. Trata-se de uma mulher carrancuda, muito bem vestida, olhar hostil e que se senta no sofá com alguns mal disfarçados muxoxos. Depois começa a falar com ar arrogante e tom de voz altivo e sibilante. relatou que há cerca de dezesseis dias havia cometido tentativa de auto-extermínio, ingerindo vários comprimidos de "Tryptanol"25mg, "Lexotan"6mg e "Dalmadorm" e, devido a isso, tinha sido internada em hospital clínico durante três dias, recebendo alta em boas condições. Dizia sofrer de depressão há poucos anos, com início dos sintomas coincidindo com a viagem que seu filho mais velho, médico, empreendeu para a Europa após a formatura. Quando de lá retornou, resolveu sair de casa e morar em outro lugar, fato que a contrariou muito, pois era muito ligada a ele. Queixava-se de sua vida, permanentemente, falando muito mal de todos os familiares, demais filhos e marido. A paciente parecia extremamente prolixa e o discurso era formal, afetado e enfadonho, desenvolvendo-se através de extensos circunlóquios e contendo uma tensão muda com o interlocutor muito desconfortável. Entratanto, à medida que ela falava, evidenciavam-se aparentes descarrilhamentos do curso de seu pensamento e as queixas que fazia sobre o suposto prejuízo que sua família lhe causava começaram a adquirir cores de inverossimilhança, ou seja, de algo absurdo e desproposital. Enfim, sob a fachada de aparente altivez e arrogância entremeando certo histrionismo grosseiro de seus modos, gestos e fala, pouco a pouco fui percebendo que sua insanidade emergia e se desenhava de maneira completa e inequívoca. Por exemplo, dizia que em sua casa as filhas não paravam de fazer "fofocas" com ela, sentia que as acusações muitas vezes eram insinuadas, que certos gestos e olhares dos familiares eram repletos de intenções secretas e malévolas, que "certas coisas" ela pecebia "no ar". Por isso, espreitava atrás das portas furtivamente, esperando descobrir, por inteiro, a rede completa de acusações e denúncias que, supostamente, tramava-se contra ela dentro de sua própria família. Naquela ocasião, quadro clínico pareceu-me ser compátivel ou com uma depressão psicótica ou, mesmo, com esquizofrenia paranóide, hipótese menos provável mas que teria que ser considerada, desde que desconhecia totalmente o início e a evolução clínica completa do caso. Registrei, também, como terceira hipótese diagnóstica, a possibilidade de tratar-se de histeria, tamanha impressão causou-me o seu estranho e grosseiro histrionismo, colorindo os seus modos, gestos e sua fala dotados de uma espécie de arrogância rígida, fria e incongruente. Como antecedentes médicos pessoais, relatava história de hipertensão arterial e estava em uso de "Aldactone" e "Aminofilina". Prescrevi, então, haloperidol (10mg/dia) associado a biperideno (4mg/dia) e levomepromazina (25mg à noite), considerando-se a proeminência de suas concepções delirantes. A paciente retornou somente dois meses depois da primeira consulta, em 08/07/80, e para minha surpresa, mostrava-se absolutamente adequada, síntone e eutímica ao contato verbal. Haviam desaparecido completamente aquela estranha e fria arrogância e aquele histrionismo grosseiro e algo bizarro que tanta impressão me tinham provocado por ocasião da primeira entrevista. A.M.V., ao contrário, agora revelava gestos e modos brandos, gentis e cordiais e o semblante desanuviara-se completamente, transparecendo serenidade e certa benevolência. O seu discurso tornara-se linear, pausado e objetivo, desprovido da inusitada Belo Horizonte - Outubro de 2000 prolixidade anterior. Com efeito, parecia um outra pessoa, denotando  emperamento afetuoso, gentil e delicado. Entretanto, como ainda apresentasse ideação paranóide, embora visivelmente atenuada, em relação aos familiares sob a forma de queixas de "pressões silenciosas em casa" e de "comentários disfarçados dos filhos", mantive haloperidol (5mg/dia), biperideno (2mg/dia) e levomepromazina (25mg/dia). Em 24/09/80, a paciente compareceu ao consultório relatando  a morte de um sobrinho há cerca de nove dias e comunicou-me que o filho médico iria viajar novamente para a Europa. Mostrava-se tristonha e apreensiva, porém não mais evidenciava ideação paranóide. Mantive a prescrição anterior e passei a observar sua evolução clínica de modo mais atento através de retorno mais breve. " É necessário ter em mente que a psiquiatria em nada difere das outras especialidades médicas quanto à necessidade intrínseca de se formular, sempre, uma hipótese diagnóstica." Em 07/10/80, chegou ao consultório francamente deprimida, com choro contínuo e convulso, exibindo idéias de ruína e de culpa, além de acentuadas adinamia, abulia e anedonia. Tratava-se, dessa forma, de uma visível "viragem" do quadro clínico, sugerindo fortemente Transtorno Bipolar. Prescrevi dez aplicações de maprotilina por via endovenosa, em doses crescentes e diluída em soro glicosado isotônico. Após os dez dias de tratamento por via endovenosa, continuou com a maprotilina, agora por via oral, na dose de 75mg/dia. A paciente apresentou melhora significativa, com remissão dos sintomas depressivos e normalização do humor. Continuou usando haloperidol (5mg/dia), biperideno (2mg/dia), levomepromazina (25mg/dia) e maprotilina(75mg/dia) e permaneceu estável durante quase seis meses, período no qual não retornou para controle. Desconheço se ela usou regularmente os medicamentos durante todo esse tempo, mas o certo é que em 06/04/81 apresentou episódio compatível com delirium, sob a forma de episódio confusional agudo acompanhado de produção delirante e alucinatória. Aumentei a dose de haloperidol para 15mg/dia, mative medicação restante e suspendi a maprotilina. Além disso, solicitei exame neurológico, RX de crânio,EEG e química sanguínea Extensa. Em 28/04/81 retornou à consulta completamente assintomática e trouxe os resultados dos exames, que se recelaram normais. Na ocasião, mostrava-se eutímica, consciência clara, discurso fluente e sem outras alterações psicopatológicas, afirmando estar se sentindo muito bem. Reduzi a dose de haloperidol para 10mg/dia. Em 09/06/81, exibiu nova viragem do quadro clínico. Dizia-se desanimada, angustiada, não conseguia desenpenhar suas tarefas domésticas. Afirmava que tinha vontade de "ficar deitada o tempo todo". Denotava acentuadas abulia, adinamia e anedonia associadas a sentimentos de desesperança e de amargura. Reduzi a dosagem de haloperidol para 2,5mg/dia e  acrescentei 50mg/dia de imipramina que, duas semanas depois, foi aumentada para 75mg/dia. Houve boa melhora dos sintomas depressivos e, daí em diante, ao longo dos meses que se seguiram, A.M.V. evoluiu clinicamente através de ligeiras e esporádicas flutuações depressivas que foram, todas elas, deflagradas por problemas familiares relacionadas aos filhos. Em janeiro de 1982, sofreu um brando e rápido episódio de delirium, com confusão mental, perplexidade e agitação, após o filho mais novo ter rompido noivado. O aumento do haloperidol para 10mg/dia e a retirada do anti-depressivo fez com que o quadro remitisse rapidamente e, já no mês seguinte, a paciente encontrava-se muito bem e sem nenhum outro sintoma. Continuou evoluindo com flutuações sub-afetivas depressivas ao longo do mesmo ano, mas permanecendo relativamente bem, até que faleceu por morte súbita em fevereiro de 1983, vitimada provavelmente por um infarto do miocárdio.

CASO 2:

Trata-se de I.S., trinta e seis anos, casada, um filho, leucoderma, do lar e que faz tratamento há mais de dois anos no ambulatório de psiquiatria do Hospital das Clínicas da UFMG. Tem o diagnóstico de "Transtorno Histriônico da Personalidade" e vem fazendo uso atualmente de 75mg/dia de amitriptilina e de 10mg/dia de diazepan. Chamando pelo médico residente para efetuar supervisão do caso, inteirei-me dos seguintes fatos. Há cerca de um mês, a paciente ingeriu vários comprimidos de diazepan e foi levada ao atendimento de urgência do Hospital Pronto Socorro. Disse que vinha se sentindo "agitada", "acelerada" e que os medicamentos usados não conseguiam acalmá-la, razão pela qual começou a ingerir o benzodiazepínico, de início poucos comprimidos e, como não melhorasse, terminou por exceder-se na dosagem. I.S. exibe, à entrevista, um histrionismo algo grosseiro, fala ininterruptamente, quase sem nenhuma pausa, com uma tonalidade de voz estridente e sibilante. Além disso, mostra uma evidente irritabilidade afetiva, certa exaltação do humor e excitabilidade geral, difusa. A atenção é fluida, hipervigil e hipotenaz, desviando-se momentaneamente a qualquer estímulo novo. A paciente demostra um caráter autoritáriom impositivo e auto-afirmativo, gesticulando com veemência e relatando certos fatos banais de seu dia a dia com particular dramaticidade, Sem dúvida, parece estar deprimida, visto que o seu semblante é carregado e crispado, além de reportar certos sintomas típicos, tais como angústia, insônia, inapetência e crises de choro imotivadas e frequentes. Diz que suas crises de depressão iniciaram-se há alguns anos, irrompendo-se com maior intensidade em certas épocas, especialmente naqueles que coincidiam com os períodos pré-menstruais, vindo acompanhadas de abundantes sintomas conversivos e, esporadicamente, de fenômenos dissociativos. Sugeri a prescrição de um estabilizador do humor, no caso o carbonato de lítio na dosagem de 300mg/dia, aumentando-se a dose posteriormente até 900mg/dia, de acordo com os resultados obtidos pelas dosagens periódicas de lítio. I.S. manifestou melhora digna de nota em seus sintomas al longo de três meses de tratamento. Disse estar bem mais tranquila, havendo importante remissão dos sintomas, principalmente dos episódios conversivos, da sensação de inquietude e da irritabilidade. Mostrava-se, nas entrevistas de acompanhamento, menos histriônica e os seus relatos já não se faziam acompanhar da mesma dramaticidade de antes. Não mais cometeu abusos de  benzodiazepínicos. Entretanto, pouco tempo depois, alegando efeitos colaterais gastrointestinais indesejáveis provocados pelo carbonato de lítio, suspendeu o referido medicamento. Como era de se esperar, os sintomas anteriores retornaram com a interrupção do tratamento, mas a paciente recusou-seterminantemente e tentar um outro estabilizador do humor e não mais voltou para controle no ambulatório.

DISCUSSÃO:

Os dois casos clínicos relatados acima podem constituir-se em bons exemplos de como é importante a observação atenta e a valorização detalhada de certos dados semiológicos colhidos durante a entrevista psiquiátrica e no decorrer da evolução clínica da doença. Quanto ao quadro clínico de A.M.V., pode-se, sem nenhuma dúvida, estabelecer-se o seu diagnóstico como sendo um Trantorno Bipolar I, haja vista as típicas apresentações ciclicamente periódicas de fases maníacas alternadas com fases de depressão maior. As primeiras eram acompanhadas de sintomas psicóticos, mas com uma morfologia fenomenológica algo atípica e inusitada, levando-nos a pensar em outros diagnósticos diferenciais. Ressaltava-se, no entanto, um colorido paranóide acentuado que permeava todas as suas vivências anômalas, mas que, por vezes, era ofuscado pela aparente verossimilhança de seu discurso enfático e por sua própria apresentação algo amaneirada. no periódo que foi tratada por mim, o uso do carbonato de lítio, assim como dos demais estabilizadores de humor, não se constituía em prática terapêutica  corrente e fico conjecturando como ela poderia ter-se beneficiado enormemente deles, ainda mais nos dias de hoje em que contamos com o valproato de sódio, gabapentina, lamotrigina e topiramato, dentre outros, de reconhecida eficácia terapêutica nesses casos. Por último, há que se ressaltar, na observação da evolução clínica deste caso, episódios de alteração do nível da consciência compatíveis com confusão mental ou delirium, características clínicas que KRAEPELIN(3) já assinalara como sintomas bem definidos em um subtipo de suas Circuläres Irresein, forma clínica que denominou Manischer Stupor, condição nosológica que pode apresentar-se fenomenologicamente como um quadro de 'mania confusa', um estágio da doença infelizmente  ainda pouco conhecido e diagnosticado pelos psiquiatras. No que se refere à paciente I.S., concluímos que sua condição nosológica básica era um Transtorno Bipolar Misto, forma clínica onde constatamos sintomas maníacos eclodindo simultaneamente com sintomas depressivos. Entretanto como a personalidade pré-mórbida da referida paciente continha traços histriônicos importantes, estes eram enormemente amplificados pelo que já denominamos em outra parte 'filtro caracterológico'(4), apresentando-se ao observador com uma morfologia clínica correspondente a um histrionismo grosseiro e rico em manifestações conversivas. É muito importante que o clínico consiga diferenciar, nesses casos, o componente ansioso de uma possível base hipertímica para que possa estabelecer um diagnóstico preciso e uma conduta terapêutica adequada. Vimos como nossa paciente abusava de benzodiazepínicos sem conseguir obter a tranquilização desejada e isso pode ter sido o indício-chave, aliado aos outros dados semiológicos coletados, que norteou a formulação diagnóstica correta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1-American Psychiatric Association-DSM-IV- Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais, Porto Alegre, Editora

Artes Médicas, 4ª edição, 1995.

2-JASPERS, K.-Escritos Psicopatológicos. Editorial Gredos, Madrid, 1997.

3-KRAEPELIN,E.-Psychiatrie:Ein Lehrbuch für Studirende und Aerzte. Barth, Leipzig,V,Aufl., 1896

4-SOUZA, G;F;J;-A Fenomenologia dos Transtornos Psicóticos Atípicos: Os Estados Psicóides. Psiquiatria Biológia,

6(2):99-106, 1998. (Gustavo Julião)